segunda-feira, agosto 02, 2004

Crítica: Bagdá Café

"Uma Interseção num Deserto de Possibilidades"

Por Carina Rabelo

A partir das primeiras cenas do filme “Bagdá Café”, do diretor alemão Percy Adlon, o apreciador percebe que se encontra diante de uma obra incomum. Cortes secos, câmera inclinada, filtros cromáticos e personagens caricaturais são algumas das escolhas estilísticas do diretor para a composição de um dos filmes mais aplaudidos pela crítica mundial. No deserto do Mojave, próximo a Las Vegas, encontra-se o complexo de estabelecimentos “Bagdá”: um posto de gasolina, um pequeno hotel e um café. A música interpretada por Javetta Steele expressa a atmosfera do local e das pessoas que ali residem. “Há uma estrada que vai de Vegas para nenhum lugar, um lugar melhor do que onde você já esteve”.

“Bagdá Café” oferece uma narrativa rica nos programas do drama e da comédia, especialmente devido a peculiar atuação de CCH Pounder, que interpreta Brenda, uma mulher amargurada e áspera que sustenta, dois filhos, um neto, dirige um bar decrépito e ainda ‘suporta’ os lapsos de um marido acomodado. Brenda luta pela mínima sobrevivência da sua propriedade e já não acredita mais que sua vida pode romper as barreiras das dificuldades e dos dissabores. Os recursos cinematográficos de enquadramento são fundamentais para que o apreciador possa usufruir das emoções vivenciadas pelos personagens. O super-close e os planos de detalhe são intensamente utilizados, os planos são curtos e o texto ganha um ritmo harmônico, assim como as músicas tocadas por Sal Jr., filho de Brenda, um indivíduo que compõe o universo artístico do Café. A trilha sonora é basicamente composta pela melancólica “I´m calling you”, com algumas intervenções clássicas estilizadas pelo piano nervoso de Sal Jr. e pela fiel reprodução da clássica “Ave Maria”, de Gounod. A obra utiliza alguns elementos do programa musical da Broadway, em cenas que, esteticamente, se assemelham aos tradicionais musicais que apresentam mulheres vestidas de homem, com cartolas e bengalas...e com a participação da platéia do Café nas composições.

O Café na beira da estrada funciona como um ponto de interseção na vida de sete personagens: Brenda, a desleixada proprietária do Bagdá Café, uma filha espirituosa e vulgar, um filho músico incompreendido em sua arte, um pintor cenografista hollywoodiano (interpretado pelo memorável Jack Palance), uma mulher que faz tatuagens, um jovem aficionado por boomerangs e uma forasteira enigmática... Jasmin Muenchstettner (Marianne Sagebrecht), uma alemã observadora, impossível de ser decifrada num simples contato superficial. É preciso conhecê-la e compartilhar do seu café forte e amargo e das suas mágicas. Deixar-se embalar pela sua alma solidária e atenta. Trata-se de uma mulher singular, que consegue captar aquilo que há de melhor em cada indivíduo que compõe a família do Café Bagdá. Uma criatura que através da mágica executa a maior das peripécias humanas: desvelar o enigma das personagens que dão vida àquele insólito ambiente. A proprietária da simplória cafeteira que proporciona o impulso para as reviravoltas na vida daqueles que ali residem.

O conjunto “Bagdá” é um estabelecimento incomum. Um estranho café que, inicialmente quase nada tem para oferecer aos seus clientes. Os quartos do hotel são simples. O posto de gasolina parece mais seco do que os carros que, eventualmente, por ali passam. Não há lucro financeiro, apenas uma possibilidade de sobrevivência. O espaço subsiste à espera de um milagre, como um ato de mágica que poderia revolucionar aquele quadro caótico e estéril.

A fotografia assume um caráter do beleza perante a aridez. Um eterno crepúsculo celeste, contemplado por dois notáveis pontos de luz, resultado do reflexo dos espelhos sobre o centro solar. Há um calor confortável, sustentado pela utilização de filtros amarelos e avermelhados nas lentes das câmera. Algumas cenas em slow motion proporcionam a contemplação da riqueza fotográfica.

A Jasmin, pouco feminina do início do enredo esbarra-se com a Brenda “masculinizada” nos entulhos do Café Bagdá. Há uma clara transformação e feminilização na vida destas personagens, que ganhou corpo com a superação das adversidades através do trabalho e da convivência. A figura do homem torna-se pífia perante a auto-suficiência destas duas mulheres, que descobrem que as perdas podem oferecer a verdadeira liberdade para a fruição integral da vida, em toda a sua plenitude.

Crítica: Cidade de Deus

"Na Cidade de Deus, a exceção é a regra"

Por Carina Rabelo

O quase estreante diretor Fernando Meirelles conseguiu realizar uma obra fílmica tão polêmica, que tornou-se impossível alguém permanecer indiferente a Cidade de Deus, filme inspirado no livro homônimo, que estreiou recentemente nas principais salas de cinema de todo o país. A história é relatada pelo personagem Buscapé, um garoto que cresceu no conjunto habitacional Cidade de Deus, um local construído na década de 60 para abrigar aquels que perderam suas casas com as enchentes - um universo de desolados pelas tragédias, reunidos num único espaço. Buscapé nos apresenta a trama numa narrativa documental, relatando os principais fatos que estruturaram a realidade do local. Os efeitos no público são particulamente curiosos. O roteiro provoca reações que transitam da indignação ao riso, através de um programa que oferece amplas possibilidades à apreciação.

A hierarquia no morro

Os personagens são apresentados por Buscapé ao longo da narrativa e a interação entre eles permite ao apreciados orientar a organização dos afetos. A história é dividida em três blocos temporais: as décadas de 1960, 70 e o 'começo do fim'. Digressões e a quebra da linearidade são alguns recursos utilizados que permitem a oferta de um rítmo dinâmico ao roteiro. Na década de 70, surgem Buscapé, Dadinho e Bené (ainda crianças) e o os cabeças da criminalidade na época, o 'Trio Ternura', formado por Alicate, Marreco e Cabeleira, os bandidos mais temidos na época. Na década de 70, alguns personagens ingressam na narrativa: uma menina chamada Angélica (a paixão de Buscapé), Tiago (um burguês viciado em drogas), Cenoura (um traficante respeitado), Mané Galinha e algumas crianças que compõe a nova rede de interrelações do tráfico. Dadinho assume uma nova identidade: 'Zé Pequeno', o maior traficante da CDD (Cidade de Deus), Bené - parceiro de Zé Pequeno - tranforma-se numa espécie de traficante 'ético', que apazigua as práticas de crueldades do seu amigo e comparsa. Buscapé representa 'uma esperança', um dos poucos que não sucumbiu ao universo da marginalidade. Curiosamente, a CDD funciona como um império bipolarizado, onde Zé Pequeno e Cenoura comandam o tráfico de drogas. As leis da Cidade de Deus se baseiam na exceção da regra, onde matar é uma questão de sobrevivência. A coexistência dos traficantes se realiza graças a política diplomática de Bené, parceiro de Zé Pequeno. O monopólio ideológico de Zé Pequeno na Cidade de Deus promovia uma certa ordem ao caos de roubos e assaltos, afinal, a prioridade criminal na Cidade de Deus era o tráfico de drogas. Qualquer outra prática era considerada um desrespeito aos interesses de Zé Pequeno.

Destaque para alguns personagens...

Há um claro tom moralista ao longo da narrativa, afinal, Buscapé preferia a praia, o baseado e sua máquina fotográfica ao mundo do crime. Não que ele seja bonzinho e inocente, só não tinha vocação para a 'bandidagem'. A história de Buscapé prova que o crime não compensa, apesar das constantes dificuldades e injustiças vivenciadas por um negro, pobre e morador da CDD. Numa das subdivisões da narrativa, há um capítulo entitulado 'vida de otário', em que Buscapé tenta trabalhar num supermercado - a demissão injusta e a discriminação levantam o questionamento: o que compensa é a busca pela sobrevivência. Será? Bem, no 'Trio Ternura' só quem saiu com vida foi justamente aquele que saiu do crime - Alicate, que trocou as armas pela bíblia. A oportunidade com o fotojornalismo de desenvolve pela casualidade dele estar no lugar certo na hora certa. Não há grandes questões éticas ou morais defendidas por este personagem. De fato, Buscapé esquiva-se dos tiros e desvia-se do crime, mas, acima de tudo, por uma questão de sobrevivência.

Os afetos são organizados para que se verifique uma certa 'predileção' pelo personagem Buscapé, através da reconhecibilidade do seu despreparo para o crime. Bené, apesar da inserção no crime também é um dos mais 'carismáticos'. Bené atua como o pacificador do morro. O único que é de fato respeitado por Zé Pequeno. Irmão de Cabeleira, o bandido malandro da antiga CDD, onde os crimes eram mais toleráveis e menos hediondos. Bené, assim como seu irmão, troca o crime pelo amor de uma mulher, mas o sonho da mudança de vida com a mulher amada vem acompanhado da inevitabilidade da morte, em ambos os casos. Bené atuava como um catalizador para os anseios de Zé Pequeno e funcionava como o 'relações públicas' do morro, que conseguia reunir num único espaço os funkeiros, os sambistas, os crentes, os amantes da black music, os cocotas (burgueses) e Zé Pequeno.

Zé Pequeno iniciou sua vida de criminalidade muito cedo. Prematuramente cruel, já era capaz de executar a sangue frio uma chacina num motel da região, e por nenhum motivo aparente. Quando pequeno, ainda conhecido como Dadinho, queria ser respeitado e já apresentava um talento assustador para o crime. Cabeleira o considerava, muitas vezes defendendo-o dos ataques dos mais velhos, especialmente de Marreco (irmão de Buscapé), que nunca respeitou Dadinho. Em diversos pontos da narrativa, é notável a preocupação das crianças em serem respeitadas pelos mandante do crime. Os menores, referidos como 'caixa-baixa' são constantemente maltratados e explorados pelos mais velhos. A regra é provar que quanto mais cruel e impiedoso, mais preparado para o crime. As bolas de gude e pipas são substituídas por AR-15 e metralhadoras de grande porte. Dadinho cresce e é batizado como 'Zé Pequeno' por um Pai de Santo, que lhe promete poder e glória na sua trajetória no crime. O seu comportamento deliquente oferece uma base para as estratégias de humor do filme. Sua crueldade e frieza arranca alguns risos da platéia e logo em seguida provoca um silêncio decsoncertante. Os programas de tragédia e humor são apresentados equilibradamente ao longo de toda a narrativa, apesar da história tornar-se cada vez mais impactante, com o cresciemento e aperfeiçoamento do crime. A morte de Zé Pequeno provoca uma das grandes reviravoltas na história, pois Zé Pequeno perde toda e qualquer capacidade de julgamento racional. A questão do tráfico se perde e as questões pessoais de ódio, inveja e vigança assumem o carro-chefe da eclosão da guerra na Cidade de Deus.

Cenoura era o outro vértice do tráfico. Inimigo de Zé Pequeno, mantinha relações cordiais com Bené, mantendo-se intacto na Cidade de Deus. Com a morte de Bené, a guerrilha foi articulada e Cenoura procurou apoio do Mané Galinha, um ex-soldado que ingressou na guerra contra Zé Pequeno por questões puramente pessoais. Defendia a preservação da vida dos inocentes, mas assim como todos na Cidade de Deus, aprendeu que toda regra tem exceção, e logo só viu tão criminoso como qualquer outro sujeito naquela guerra. As crianças perdem a pureza característica da infância e mostram-se tão sedentas pelo crime e pelo poder como qualquer adulto. Não há o mito do bom e do mau. A máxima da recompensa com a bondande cede espaço para a necessidade da lei da sobrevivência.

As estratégias narrativas

Os planos de filmagem são particulamente inovadores. Os personagens aparecem entrecortados e os supercloses nos pés ou na boca são algumas das escolhas de enquadramento que provocam efeitos que vão da graça à repugnância. O sépia utilizado nas cenas da década de 60, os cabelos black power da década de 70, o funk e a black music permitem uma clara associação às referências de tempo/espaço que o filme apresenta. Movimentos de câmera em travelling são alguns dos destaques nos efeitos visuais. As canções acompanham o ritmo da narrativa, com sambas e choros clássicos na década de 60 e 'Metamorfose Ambulante' de Raul Seixas para a década de 70 - que marca a transformação de Bené de um simples traficante num traficante playboy - e algumas canções de Tim Maia servem com eficácia ao contexto e ao tempo da história. A história da boca dos AP´s talvez seja um dos aspectos mais marcantes para que o espectador possa acompanhar o processo de evolução do tráfico. Tudo começa com uma dona de casa que resolve vender drogas depois que fica viúva. A boca é tomada por 'Grande' - o cenário que era uma casa tradicional vai começando a entrar num processo de degradação - as fusões cumprem o papel de marcar a lenta a gradual passagem de tempo. Ao longo da história da boca dos AP´s, os móveis vão desaparecendo e ambiente vai se deteriorando cada vez mais. Quando Zé Pequeno assume a boca, nada mais há, apenas um espaço vazio. A quebra da linearidade da narrativa é executada de forma clara, sem que o roteiro ou a história apresentem-se dispersos. Muitas digressões são utilizadas, quando o narrador anuncia previamente a apresentação de um personagem e deixa para contar sua história depois. A expectativa criada no espectador provoca uma certa familiarização com os integrantes da CDD. É como se todos nós fizessemos parte daquele mundo e acompanhassemos ao vivo o desenvolvimento da trama. As telas divididas conferem ao espectador um conhecimento paralelo dos fatos e a consequente previsão de alguns acontecimentos. O figurino é estremamente fiel ao retrato da época e alguns detalhes foram minusciosamente respeitados, como os carros, o fardamento da polícia (que vai mudando com o passar dos anos) e até o rótulo da lata de leite ninho que aparece no supermercado. Não há qualquer falha nos detalhes que compõem a cena. A estratégia do feio x belo também é colocada de forma clara. Zé Pequeno além de cruel é feio e perverso. Seus traços grosseiros externalizam seu caráter horrendo. O título de 'herói' na guerra do tráfico poderia caber para Mané Galinha (o quase mocinho da história), que entrou no mundo do crime não para roubar ou matar, mas para vingar-se de Zé Pequeno e promover a justiça dos homens. Como o próprio Buscapé refere-se na contextualização do duelo Mané Galinha x Zé Pequeno : "A parada aqui é entre o bonitão do bem e o feioso do mal". Naturalmente, os afetos contemplam Mané Galinha - que além de belo, luta por causas mais nobres.

Os ganchos de atualidade

A guerra do tráfico nunca foi apresentada com tamanho realismo. Para os menos integrados com a realidade das favelas brasileiras, pode parecer uma obra farta de clichês e estilizações. Mas é importante ressaltar que há um mundo, uma Cidade de Deus, que vai muito além dos nossos jardins e quintais, e de um conhecimento raso da questão do narcotráfico. Não há uma muita complexidade nos personagens, mas, nem por isso, são caricaturais. Caracterizados com verossimilhança, Buscapé, Zé Pequeno, Bené e os demais representam aqueles que vivem nos extremos entre a vida e a morte, o crime e a pureza, a exclusão social e as recompensas do tráfico. A procura por poder e respeito é uma condição humana que supera classes sociais, e que compõe a situação da busca da sobrevivência, num local onde a vida é tudo o que se tem. Aqui fora, há um sistema policial e jurídico que funciona para nós. Na Cidade de Deus, a polícia corrupta torna-se conivente com o tráfico, explicitando o tênue limite que separa os parâmetros de justiça e de criminalidade. "A polícia faz a sua parte. Recebe o dela e não perturba". Nos programas narrativos policiais, a abordagem do crime se dá sob duas instâncias: o busca pela riqueza material e a passionalidade. No filme 'Cidade de Deus' percebe-se o crime sob a ótica do tráfico (poder e respeito) e por questõe pessoais, sobretudo com as crianças, que vêem na guerrilha um instrumento de vingança pela morte de um pai ou pelo estupro de uma irmã - uma grande 'escola do crime'. Um mecanismo de justiça que lhes parece mais eficaz do que qualquer sistema jurídico ou policial. A morte é banalizada e já não se sabe como toda a guerra começou. A questão é cíclica: armas que são fornecidas por policiais para os 'intermediários' chegam aos traficantes, que as distribuem para as crianças, perpetuando o fluxo da violência. Não há soluções para lugares como Cidade de Deus - é sempre o começo do fim, onde matar um traficante apenas significa facilitar a vida de algum outro. As escolhas não se fundamentam na perspectiva comum da justiça. Essas pessoas vivem no limite entre agir da forma certa, da forma errada ou da forma do tráfico.

Crítica: Hana-Bi - Fogos de Artifício

"Existencialismo numa linguagem policial"

Por Carina Rabelo

Nas primeiras cenas de Hana-Bi, o espectador pode pensar que encontra-se diante de mais um filme policial padrão, com direito a todo o pacote de tiroteios, explosivos e sangue. Mas, curiosamente, a violência na qual a narrativa se propõe a retratar nesta obra apenas serve como o pano de fundo para um roteiro que prioriza os dramas humanos, na perspectiva de um diretor inovador, numa linguagem incomum. O filme, estrelado, escrito e dirigido por Takeshi Kitano, entitulado em português como “Fogos de Artifício” foi premiado com o leão de ouro na categoria de melhor filme no Festival de Veneza de 1997. Também responsável pela montagem, Takeshi elaborou uma obra peculiar no gênero de ação. Nishi, personagem interpretado por Kitano, perdeu sua filha com cinco anos, sofre por ter uma mulher com câncer e luta para fazer justiça aos seus companheiros: Tanaka, assassinado pelos gângsters da máfia japonesa Yazuca, e Horibe, que ficou paraplégico após um tiroteio com os mesmos mafiosos. Até aí, mais um argumento fílmico tradicional, semelhante a qualquer romance policial de Hollywood. O diferencial de Hana-Bi está justamente na forma em que o argumento é desenvolvido.

Comparado pelos críticos de cinema como um novo Quentin Tarantino ou Clint Eastwood, Kitano trabalha o roteiro de forma bastante peculiar. As cenas de luta praticamente não acontecem. Seu foco está mais no ‘resultado’ dos ataques do que nas peripécias e balés da violência. Um soco no nariz é capaz de gerar sangue suficiente para inundar toda a tela. Os diálogos entre os personagens são substituídos pelo silêncio na maior parte da narrativa. Planos longos favorecem à contemplação necessária. Os elementos de cena são estáticos como um quadro e devem ser apreciados como tal, pois oferecem amplas possibilidades de interpretação. Os olhares substituem os diálogos e os quadros pintados pelo inválido Horibe expressam a verdadeira natureza da obra fílmica.

As cores são intensamente exploradas. O vermelho do sangue dos gângsters, o azul do mar que embala as últimas cenas e a neve que corre solta como um oceano de tinta branca. A composição de cores e imagens revela muito mais do que qualquer personagem. Através dos quadros - pintados pelo próprio Kitano - a história se desenrola. Os animais e figuras pintadas não possuem

rostos, assim como os gângsters: não importa quem são individualmente, o que está em jogo é aquilo que representam. A fotografia é particularmente rica, assemelhando-se a grandes quadros, rasgados pelas ações dos personagens.

Por que as flores?

Os ideogramas japoneses, vistos de longe, parecem pequenas flores e, assim como elas, favorecem à interpretação, não revelando de imediato aquilo que significam. Os animais e pessoas nos quadros que cercam a narrativa apresentam seus rostos substituídos por tulipas, kanangas e rosas. Estes elementos são utilizados para ilustrar a contraposição entre a violência da máfia japonesa e a ternura que envolve a relação entre os personagens. O afeto não se dá numa linguagem ocidental, percebe-se claramente o estilo de vida e de afetividade no padrão japonês. Poucas palavras, poucos abraços, companheirismo, dedicação e lealdade. Devido ao lirismo da narrativa, embebido pela estética da violência, há uma nítida sensação de paz na apreciação. As pinturas, as flores, a neve e a pescaria no lago são algumas das opções de enquadramento que quebram a crueza das mortes. Trata-se de um filme intimista, travestido de elementos de ação e linguagem policial.

Nishi mata pessoas à sangue frio, numa inabalável indiferença. Mata rapidamente... quase um Bruce Lee ou um justiceiro dos clichês norte-americanos. Mas a sua violência não se dá por meras questões de dívidas financeiras com os agiotas da máfia, é o resultado de um vazio vivenciado por ele e pelos demais personagens. Sua mulher com leucemia representa o lado mais puro de Nishi, pois apenas ao lado dela reside a sua verdadeira paz. Horibe, solitário e abandonado pela família após perder os movimentos, tenta encontrar na pintura uma forma de vencer a depressão. As tragédias ocorridas com os personagens permitem que Nishi, aparentemente frio e cruel, sinta a necessidade de demonstrar o seu amor, lealdade e generosidade por aqueles que lhe são caros. Há pouca comunicação entre os personagens. Não que haja uma dificuldade no diálogo, mas há uma escolha pelo silêncio.

Takeshi Kitano utilizou um estilo narrativo bastante peculiar. Aborda o existencialismo humano mesclando a necessidade de sobrevivência perante às adversidades e a morte como a única possibilidade para a verdadeira libertação. Utilizando figuras estilizadas de mafiosos e agiotas, consegue ir além das lutas e combates, através dos elementos artísticos que expressam os conflitos numa perspectiva filosófica. Os quadros não só manifestam os anseios de vida e de morte dos personagens como também revelam uma opção narrativa original na estruturação dos acontecimentos. Kitano assemelha-se a Tarantino na banalização da violência e na caricatura dos personagens, mas, certamente, foi muito mais ousado do que o americano, quando recorre às artes plásticas na ilustração da aspereza das relações humanas e dos dramas existenciais.

Crítica: Paris Texas

"Um ponto de partida para uma nova existência"

Por Carina Rabelo

Um filho. Uma esposa. Uma família que se perdeu no tempo. A busca das origens e a longa jornada pelos caminhos desérticos do Texas. É nesse contexto que o diretor Wim Wenders apresenta “Paris,Texas”, um filme que revela um homem à procura da sua identidade, alguém que tudo perdeu e que sobrevive alimentando-se do seu vazio espiritual. O personagem Travis (Harry Dean Stanton) encontra-se perdido na árida paisagem desoladora dos desertos texanos, devoluto e inabitado cenário que reflete a alma do personagem, desprovido de sensações. Desmaiando desidratado, o solitário andarilho é transportado para um posto médico da região. Seu irmão, Chuck , que não o vê há quatro anos, vai ao seu encontro. Ao encontrá-lo após tanto tempo, Travis nada demonstra, apenas o desejo de caminhar para o nada em busca de coisa nenhuma. Chuck persiste e acaba convencendo-o a acompanhá-lo até sua residência em Los Angeles, onde mora Hunter, um garoto de sete anos, filho de Travis, que pouco se lembra do pai e que foi abandonado pela mãe. A trama se desenrola quando Travis começa a ter o interesse em provar para o garoto que é o seu pai verdadeiro, e o mais desafiador: fazer o menino sentir-se como seu filho. Durante o processo de conquista entre pai e filho, ambos saem em viagem na tentativa de encontrar Jane, mãe de Hunter, a única que pode preencher a lacuna existencial de suas vidas. Na trajetória do vago e misterioso Travis, Wim Wenders nos convida à análise das raízes que compõem os dramas humanos, nos mais simples e complexos acontecimentos que formatam nossas histórias.

Uma relação obsessiva

As últimas referências do quase amnésico Travis estão relacionadas à sua bela e jovem esposa Jane, e um agradável verão desfrutado pela família. Os fatores que revelam a essência da crise de Travis e as razões do seu desaparecimento ao longo de quatro anos são apenas revelados no final da trama, mas, curiosamente, o apreciador não sente carência por explicações. O argumento do filme se apresenta pelos pequenos detalhes que permeiam as transformações de Travis, de um indivíduo fracassado e insípido num homem em busca de respostas através das suas origens. A metáfora ‘Paris, Texas’ nos remete a um conceito-chave para a compreensão do enredo. Concebido pelos seus pais na pequena cidade chamada Paris, no estado do Texas, Travis faz alusões ao comportamento, por vezes obsessivo, do seu pai, que insistia em dizer que conheceu sua esposa em Paris, complementado pausadamente com a referência ao Texas. Era um homem que queria travestir sua humilde mulher como uma dama sofisticada, uma típica parisiense. Um conceito que destaca nas relações humanas a tendência à idealização e à não aceitação do outro em sua essência. Um caminho que nos guia à percepção de um encadeamento de vícios de comportamento, culminando em atitudes passionais obsessivas. Há uma clara necessidade de exorcização da origem humilde, hispânica, comum... apenas assim o presente poderia ser suportável. Um lote vazio na velha Paris metaforiza a tentativa de ruptura com um passado que lhe persegue e não lhe agrada.

O sentimento de desolação da personagem principal é temperado pela trilha composta por Ry Cooder, que apresenta guitarras simulando banjos e bandolins, nos transportando ao seco e áspero deserto do Texas. O tempo ficcional é desenvolvido linearmente, mas não é proporcional ao tempo físico, demandado pelas ações dos personagens. Cruzar os Estados Unidos no roteiro Texas – Los Angeles – Texas – Houston nunca foi tão rápido de carro. Alguns planos são particularmente longos, em destaque para aqueles que envolvem o garoto Hunter e seu “novo” pai, onde percebe-se a necessidade de uma observação contemplativa e detalhada. Os movimentos de câmera amplos e lentos proporcionam a sensação de um espaço vago e ilimitado.

Os atores se encaixam na trama em perfeita harmonia, numa combinação de boas escolhas. A bela Natassja Kinski representa Jane – a chave para as crises de loucura e depressão vivenciadas pelo enciumado Travis. O argumento do filme se confirma na homogeneidade do composto amor x obsessão, onde análises sociais ou políticas não são apontadas pelo enredo. É uma história de paixões, intensidades, loucuras, medos, fragilidades e fuga, mas acima de tudo, uma solicitação à procura das vicissitudes dos prazeres e arrebatamentos humanos.

Crítica: Uma Simples Formalidade

"Memória em fragmentos numa narrativa surpreendente"

Por Carina Rabelo

Um bosque silencioso e taciturno. Uma arma voltada para a câmera. Um tiro. Violinos nervosos embalam a cena. Um homem corre, louco e ofegante pelo bosque que, repentinamente, torna-se palco de uma tempestade inexplicável. Suspiros e desorientação. O homem encontra-se perdido... mas há uma luz no fim do bosque. São policiais. O desorientado sujeito não possui documentos, então, é encaminhado para a delegacia - um estranho local distante e misterioso, semelhante a um castelo abandonado e sombrio. Nada há, apenas policiais e um delegado. Nesse cenário de obscuridade, Giuseppe Tornatore apresenta ‘Uma Simples Formalidade’, estrelado por Gérard Depardieu e Roman Polanski, uma história policial que rompe com a expectativa tradicional de uma narrativa de suspense.

Gérard representa Onoff, um consagrado escritor, que agonizado por motivos desconhecidos, não consegue explicar ao delegado (Roman Polanki) o que faz sozinho num bosque, no meio de um temporal e sem documentos. O delegado lhe faz perguntas simples como o que ele havia feito durante aquele dia, mas Onoff não consegue elaborar uma resposta coerente, pois sua memória não funciona de forma linear. Há flashes, lapsos, exceto uma organização congruente dos fatos. Para complicar a sua situação, coincidentemente, houve um assassinato naquela mesma noite.

O que seria uma simples formalidade policial torna-se um complexo interrogatório, no qual o delegado se encontra num constante duelo pessoal entre a sua profunda e inabalável admiração pelo artista e pela possibilidade do mesmo ser um cínico e perigoso assassino. Tornatore nos surpreende ao longo dos 107 minutos da trama, desvelando um texto que nos coloca diante da constante dúvida sobre a clareza dos fatos. Há um crime, no qual não se conhece a vítima, mas já existe um suspeito, um homem transtornado, confuso e contraditório em tudo o que diz.

O espectador é levado a assumir diversos posicionamentos na narrativa. Onoff é mesmo o assassino? Quem é a vítima? Há uma conspiração na delegacia? Seria Onoff um bode expiatório? Assim, o enredo se desenrola num espaço fixo – um pequena e decrépita sala. São 67 minutos numa espaço encurralado por ratos, goteiras, vinhos e incertezas. A trilha acompanha o suspense do enredo, numa sonoplastia estridente e ameaçadora.

As fotografias e as pequenas lembranças

O sentimento de admiração do delegado pelo escritor e o clima de compaixão e aflição dos policiais durante o interrogatório se mesclam com a desconfiança da autoria do ‘suposto’ crime. O pensamento de Onoff, desorganizado e incoerente, passa a estruturar-se num ritmo linear, a medida que vai lembrando aos poucos das personagens que compõem a sua história. Embebido pelas lembranças entrecortadas, o escritor passa a desconfiar de si próprio, ao recordar de cenas inexplicáveis como discussões com a amante, papéis picotados sobre a escrivaninha e uma arma de fogo... que foi posteriormente localizada no local do ‘crime’. As fotos permitem que Onoff recomponha um referencial sobre a sua existência.

Num roteiro extremamente bem elaborado, o apreciador encontra-se tão perdido quanto o próprio Onoff e compartilha do dilema sofrido pelo delegado. As imagens-clipes e a câmera em travelling nos proporciona um universo de conflitos numa narrativa extensa e complexa, que promete abalar os alicerces do real e do verossímil, afinal, tudo é inacreditável naquela delegacia, uma masmorra de descobertas que suplantam as fábulas e fantasias metafísicas.

Crítica: Underground

"A Sátira de uma Guerra"

Por Carina Rabelo

1941. Os alemães invadem Belgrado, anunciando o início da Segunda Guerra Mundial. Três anos depois, os russos bombardeiam a cidade, dominada por alemães. Assim nos é apresentada a Iugoslávia de Emir Kusturica, premiado com Palma de Ouro no festival de Cannes em 1984 pelo filme “Quando papai saiu em viagem de negócios” e diretor de “Underground”, filme vencedor da Palma de Ouro de Cannes, em 1995. Apesar do estilo caricatural dos personagens, o espectador encontra-se diante de uma obra curiosamente complexa. Natalija, uma mulher frívola e escandalosa, Marko, um facínora manipulador, Crni, um fanático estabanado, Ivan, um simplório gago e Jovan, uma espécie de menino criado em “laboratório” que experimentará o mundo pela primeira vez aos 21 anos, estruturam um elenco que compartilha um único espaço – um porão – um refúgio numa guerra de massacres e destruições. A relação entre os personagens compõem o programa de humor, que predomina durante toda a narrativa, pois a II Guerra Mundial é apresentada como pano de fundo nos conflitos das relações entre estes personagens. Os amigos Crni e Marko dividem a mesma mulher e os anseios de uma guerra... que vai muito além das questões internacionais que envolvem fascistas, nazistas e comunistas. É uma guerra sobre a identidade de um povo, a luta pela sobrevivência daqueles que precisam de uma revolução grandiosa para que possam dividir, não só um porão, mas uma razão para viver.

Há uma guerra lá fora...

Nos primeiros contatos com a obra, o espectador surpreende-se com o descaso dos personagens em relação ao bombardeio. Belgrado está em chamas e um casal permanece inabalável em uma sala de jantar. Numa outra residência, um homem parece estar mais preocupado com seus prazeres sexuais do que com o desabamento da sua casa. As jaulas do zoológico são aniquiladas e os animais estão a solta. Mas ninguém parece se preocupar muito com tigres e elefantes nas praças de Belgrado, afinal, não há nada de mais acontecendo lá fora, apenas o início da II Guerra Mundial. É neste contexto inverossímil e, por vezes hilário, que se estabelece o humor no filme. Através do absurdo, o filme consegue captar as atenções nos diversos padrões de apreciação.

Underground não advoga uma causa política. A postura comunista dos personagens principais remete a um outro questionamento. Não é um sistema de governo que está em discussão. O filme não quer provar ou militar no plano ideológico. Seu posicionamento é verificado através de uma orientação para um argumento psicológico, no qual os personagens estilizados em suas características expressam uma total dependência em relação ao porão em que se refugiam – um mundo subterrâneo, onde existem pessoas que sobrevivem pela crença de que são privilegiados, pois estão vivos, acima de tudo. É na guerra que se constrói a identidade de um povo e este túnel subterrâneo funciona como uma espécie de lar. Os refugiados são como irmãos, integrantes de uma família grande, que perdeu muitos filhos lá fora... na temível guerra que consome toda a Iugoslávia. Não importa quem está atacando, pois russos e alemães deixaram suas marcas em Belgrado, numa tempestade de sangue e de dominação militar. O inimigo é mais complexo – é o vazio e a falta de uma identidade, tanto para quem está no porão quanto para quem está fora dele. O ditador Tito assume como um herói, alguém que, finalmente, representa esta nação desunificada, formada por sérvios, croatas, albaneses – todos unidos geograficamente e tão isolados culturalmente.

O ditador do porão

Se aquele mundo subterrâneo fosse uma nação, certamente, Marko seria seu chefe de estado. Grande articulador do teatro de guerra, Marko catequiza seus súditos e monta um pequeno exército – os próprios habitantes do mundo “Underground” – que produzem armas para fortalecer a máquina bélica da ofensiva comunista. O partido Petar Popara, criado por Marko e seus ‘camaradas’, foi mais um dispositivo que favoreceu a estrutura do domínio ideológico no porão. Marko era um espécie de ‘Tito’, o grande ídolo da massa de refugiados. É um personagem caracterizado pela ambição. Os desenlaces são explorados com graça, devido a textura caricatural do personagem, que demonstra seu comportamento tirânico e obsessivo. Apaixonado por Natalija, Marko utiliza os refugiados do porão como operários na produção de armas, que serão contrabandeadas, proporcionando seu enriquecimento ilícito. Cnir, aparentemente seu melhor amigo, torna-se uma peça fundamental no seu teatro de guerra, uma vez que era um dos maiores articuladores e disseminadores do Petar Popara na comunidade do porão.

Cnir, Natalija e Ivan são outros personagens relevantes para a narrativa. Cnir e Ivan vivem vinte anos escondidos no porão. Cnir anseia pelo dia em que farão os alemães pagarem por tudo o que fizeram. Através do seu discurso político oco, prega o comunismo – um aparelho de contestação deste personagem que, inquieto, está sempre em busca do intangível – como a mulher ‘impossível’ e o filho desaparecido. Ivan, irmão de Marko, prefere perseguir Soni, um chimpanzé – o único sobrevivente do massacre no zoológico – do que atuar entre os ‘camaradas’ do fictício partido comunista. Ivan além de gago, tem problemas de relacionamento com seres da mesma espécie. Seu macaquinho parece mais adaptado à convivência com os humanos e ao raciocínio lógico, ou melhor, instintivo – que culminará com a explosão do porão. Um chimpanzé foi mais hábil do que qualquer humano para colocar um fim naquela farsa.

Jovan, filho de Cnir, nasceu sob os escombros do porão, e lá viveu por todo o tempo. Ao completar 21 anos, sai pela primeira vez do porão sorrateiro, conhecendo a lua, ou o sol, tanto faz. O rio também é uma novidade. Nadar? Nem pensar... os habitantes do porão em muito assemelham-se aos animais apresentados no início da narrativa. Presos e domesticados. Limitados a um universo que necessita de explosivos para abrir suas grades. Portanto, a guerra é um mero pretexto para a verdadeira libertação. Cnir e Jovan parecem desfrutar do prazer da vitória sobre o inimigo invisível, a própria desolação da qual eram vítimas.

Natalija direciona seus afetos para Marko e Cnir alternadamente. Atriz de teatro, inicialmente, cortejava o soldado alemão Franz, foge com Cnir e seduz Marko que, segundo ela, conta ‘mentiras tão lindas’. Alienada e frívola, Natalija representa um ponto de interseção dos interesses de Marko e Cnir. O terceiro vértice para a composição do triângulo amoroso que sustenta o humor na narrativa, através de ações estereotipadas e alegóricas. Gritos, escândalos e acessos de embriaguez são algumas das escolhas para a configuração desta personagem.

Lili Marlene e as cenas documentais

A trilha sonora, com destaque para a repetitiva banda de sopro e seu repertório único, oferece um elo entre a música principal “Lili Marlene”, interpretada por Marlene Dietrich, e as imagens do documentário da guerra, mesclando elementos da história real com personagens da ficção. As imagens de Tito, das marchas iugoslavas e a vitória comunista complementam a ficção, mas, novamente, o caráter documental não remete a uma relevância na narrativa. Os componentes na confecção dos planos cinematográficos são demarcados por cortes secos, imagens tremidas (especialmente nas cenas dos bombardeios), utilização de filtros avermelhados e planos de detalhe. Os planos não são longos, mas as cenas são demasiadamente extensas, acarretando em 195 minutos de exposição num ritmo contínuo e progressivo. A transição dos capítulos da narrativa utilizam um padrão estético semelhante aos filmes mudos do início do século passado: quadros pretos com lettering branco, bordas clássicas e uma trilha suave. Há uma referência à estética de apresentação da comicidade do cinema teatral dos anos 20, como “Tempos Modernos”, de Charles Chaplin.

Uma história que não tem fim

O aspecto cômico do texto cede espaço a uma narrativa surrealista, nas últimos cenas. Isolados em um pedaço de terra que descola do resto do continente, aí esta a ‘sociedade do porão’, novamente à deriva... agora no seu próprio espaço. A guerra étnica entre sérvios e croatas é pontuada, mas, assim como a II Guerra Mundial, não chega a configurar-se como um fato de relevância histórica, mas apenas mais uma ambiência para a composição do argumento fílmico, que se baseia na perspectiva das relações humanas. A necessidade da guerra é eminente, pois até mesmo quando não existe, é inventada. A eterna busca pelo ‘porão’ conota a necessidade do encontro com um referencial maior. E a guerra cumpre este papel: o elemento de compactação por um ideal comum, mesmo que ele se fundamente numa militância política irreal.

CURIOSIDADES!

Emir Kusturica

Nascido em 24 de Novembro de 1954, em Sarajevo, na Bósnia-Herzegovina, desde 1986 tem atuado como músico, tocando baixo na banda iugoslava de tecno-rock “No Smoking”. Um pouco antes da guerra nos Balcãs estourar no início dos anos 90, o líder da banda Nele Karajilic mudou-se para Belgrado em 1994 e formou uma nova banda com músicos mais jovens, incluindo o bateirista Stribor Kusturica, filho de Emir. Em 1998, “No Smoking” compôs a trilha para o filme de Kusturica “Black Cat, White Cat”, vencedor do leão de prata do festival de Veneza do mesmo ano. Em 1999, “No Smoking” gravou um novo álbum “Unza Unza Time”, produzido pela gravadora Universal, assim como um vídeo clipe para a MTV, dirigido pelo prórpio Emir Kusturica.

domingo, agosto 01, 2004

Crítica: O Céu sobre Berlim

Por Carina Rabelo

A obra se fundamenta sob três dimensões básicas: o mundo dos anjos x o mundo dos humanos ; a crônica da cidade de Berlim e uma história de amor entre um anjo e uma trapezista. A dimensão estética sensorial se verifica através do uso de determinados dispositivos estratégicos, como o preto e branco (instância dos anjos) e as cores (instância dos humanos). O efeito principal dentro do programa narrativo é o de contemplação. Os planos longos, a narrativa lírico-poética e a trilha sonora lírica e sombria compõem o quadro de recursos utilizados para a contemplação, que requer uma “perda de tempo” na narrativa - uma estrutura eficaz para a observação dos detalhes do filme, para a apreciação da trilha. Um tipo de filme para um apreciador de segundo-nível, que “usa” e “usufrui” a obra, visando um entendimento amplo e detalhista. A cronologia do filme torna-se deduzível através de uma única alusão temporal: a última apresentação da personagem Marion no circo - a trama se desenrola em dois dias.

O Mundo dos Anjos

Não existe uma relação de contraposição entre o mundo humano e o mundo dos anjos no sentido de gerar inferências qualitativas. Não há um mundo melhor do que o outro, apenas diferentes. Damiel ressalta logo no início da trama sua curiosidade sobre os mínimos prazeres humanos. Cassiel não contesta, porém enfatiza a onipresença angelical e a possibilidade da existência eterna. Não há um confronto de idéias, apenas diferentes enfoques.

As crianças são implicitamente comparadas aos anjos. A pureza infantil confere uma habilidade para ‘ver’ aquilo que os adultos jamais conseguiriam, pois existe a capacidade do entusiasmo com tudo o que lhes é externo, não somente com aquilo que diretamente estão envolvidas. “Via uma poça de água e achava que era o mar”. Assim também se estrutura a onipresença dos anjos – na contemplação e experimentação dos mais variados sentimentos e pensamentos humanos, mesmo que lhe sejam tão externos. As perguntas clássicas da infância como “Por que eu sou eu e não você?” ; “Por que estou aqui e não lá?” também conotam um ponto de interseção com os ‘questionamentos’ de Damiel, que a todo tempo indaga sobre os pequenos prazeres sensoriais da existência humana. Há um certo prazer dos anjos na comunhão dos dramas humanos e no oferecimento da sensação de tranqüilidade e bem-estar para os atormentados, mas apenas as crianças desfrutam da felicidade constante.

A onipresença também é oferecida ao apreciador, uma vez que ele compartilha de todas as informações oferecidas aos anjos. O diretor utiliza o recurso da câmera subjetiva, na qual o apreciador pode perambular pela biblioteca e receber os olhares da colônia de anjos ali presente - uma relação de utilização da estratégia plástica com pretensões nas dimensões estética e poética.

O Contador de Histórias

O velho ancião funciona como um porta-voz textual dos anjos. “O grande contador de histórias (Deus) revela a humanidade através das crianças e dos idosos”. Os anjos são revelados através deste personagem, que metaforiza as características ‘angelicais’ das crianças. O contador está intrinsecamente ligado à crônica da cidade, pois assim como todos os demais indivíduos, o personagem busca algo que se perdeu nas ruínas de Berlim: a tabacaria, a cafeteria e a própria identidade do povo - frustado, dividido e vazio de ‘emoções’.

Os Pequenos Prazeres

Fumar um cigarro e tomar um café preto. Esfregar as mãos num dia de frio. Experimentar a vida. São alguns argumentos de sedução utilizados por Peter ‘Colombus’ - o anjo que caiu - para provocar as sensações de desejo em Damiel.

Não se verifica uma banalização dos sentimentos de atração e paixão vivenciados por Damiel e Marion. Devido a inexistência de utilização de clichês romantescos, os personagens conectam-se espiritualmente sem excessos de venturas carnais. Apenas observar Marion é suficientemente prazeroso para o curioso anjo, que encanta-se com a humanidade em geral, pela simples possibilidade de poder ‘sentir’, independentemente de perdas ou ganhos. Não se verifica a presença do antagonista, pelo caráter intimista da obra, onde os conflitos se configuram no plano psicológico, sem cair em estereótipos.

Momentos de Clímax – As Passagens

Duas situações de clímax são identificáveis. No trailler de Marion, quando ela afirma: “Feche os olhos. Depois feche novamente. Aí, até as pedras terão vida”. É o primeiro momento do filme em que se verifica a utilização das cores e o concreto desejo da ‘humanização’. Damiel ergue a pedra e a guarda. O mesmo objeto retorna no segundo momento de clímax - a passagem propriamente dita - Quando Cassiel verifica a existência de pegadas deixadas por Damiel, que psicologicamente já havia “caído” para o mundo mortal. Damiel mostra-lhe a pedra. Após o travelling da câmera, foi realizada a transmutação: Cassiel segurando o anjo convertido.

O Desfecho

Marion foi a autora do ‘empurrão’ para a queda anti-parabólica de Damiel. É percebível o caráter evolutivo da migração do anjo de um plano de passividade para uma realidade de novas atitudes e de livre-arbítrio. Não há a promessa de felicidade ou de sucesso na adequação à vida humana, mas um caráter otimista é verificado na situação ‘labiríntica’ vivenciada pelos personagens, afinal, ambos sofreram metamorfoses – o fim da vida celestial e o fim do circo.

Aspectos Plásticos

Trilhas eficientes para o efeito contemplativo. Um teor clássico, com vozes em coro ilustram a experiência do “ser” anjo. Para Marion, a utilização de ritmos circenses, com toques de realejo – conferindo um estilo ‘ afrancesado’ na musicalidade. O quarteto de jazz da apresentação noturna de Marion no circo utiliza os mesmo elementos repetitivos da sonoridade circense. A banda de rock gótica confirma o padrão contemplativo da trilha sonora, com arranjos entorpecentes que caracterizam as viagens interiores de Marion.