domingo, agosto 01, 2004

Crítica: O Céu sobre Berlim

Por Carina Rabelo

A obra se fundamenta sob três dimensões básicas: o mundo dos anjos x o mundo dos humanos ; a crônica da cidade de Berlim e uma história de amor entre um anjo e uma trapezista. A dimensão estética sensorial se verifica através do uso de determinados dispositivos estratégicos, como o preto e branco (instância dos anjos) e as cores (instância dos humanos). O efeito principal dentro do programa narrativo é o de contemplação. Os planos longos, a narrativa lírico-poética e a trilha sonora lírica e sombria compõem o quadro de recursos utilizados para a contemplação, que requer uma “perda de tempo” na narrativa - uma estrutura eficaz para a observação dos detalhes do filme, para a apreciação da trilha. Um tipo de filme para um apreciador de segundo-nível, que “usa” e “usufrui” a obra, visando um entendimento amplo e detalhista. A cronologia do filme torna-se deduzível através de uma única alusão temporal: a última apresentação da personagem Marion no circo - a trama se desenrola em dois dias.

O Mundo dos Anjos

Não existe uma relação de contraposição entre o mundo humano e o mundo dos anjos no sentido de gerar inferências qualitativas. Não há um mundo melhor do que o outro, apenas diferentes. Damiel ressalta logo no início da trama sua curiosidade sobre os mínimos prazeres humanos. Cassiel não contesta, porém enfatiza a onipresença angelical e a possibilidade da existência eterna. Não há um confronto de idéias, apenas diferentes enfoques.

As crianças são implicitamente comparadas aos anjos. A pureza infantil confere uma habilidade para ‘ver’ aquilo que os adultos jamais conseguiriam, pois existe a capacidade do entusiasmo com tudo o que lhes é externo, não somente com aquilo que diretamente estão envolvidas. “Via uma poça de água e achava que era o mar”. Assim também se estrutura a onipresença dos anjos – na contemplação e experimentação dos mais variados sentimentos e pensamentos humanos, mesmo que lhe sejam tão externos. As perguntas clássicas da infância como “Por que eu sou eu e não você?” ; “Por que estou aqui e não lá?” também conotam um ponto de interseção com os ‘questionamentos’ de Damiel, que a todo tempo indaga sobre os pequenos prazeres sensoriais da existência humana. Há um certo prazer dos anjos na comunhão dos dramas humanos e no oferecimento da sensação de tranqüilidade e bem-estar para os atormentados, mas apenas as crianças desfrutam da felicidade constante.

A onipresença também é oferecida ao apreciador, uma vez que ele compartilha de todas as informações oferecidas aos anjos. O diretor utiliza o recurso da câmera subjetiva, na qual o apreciador pode perambular pela biblioteca e receber os olhares da colônia de anjos ali presente - uma relação de utilização da estratégia plástica com pretensões nas dimensões estética e poética.

O Contador de Histórias

O velho ancião funciona como um porta-voz textual dos anjos. “O grande contador de histórias (Deus) revela a humanidade através das crianças e dos idosos”. Os anjos são revelados através deste personagem, que metaforiza as características ‘angelicais’ das crianças. O contador está intrinsecamente ligado à crônica da cidade, pois assim como todos os demais indivíduos, o personagem busca algo que se perdeu nas ruínas de Berlim: a tabacaria, a cafeteria e a própria identidade do povo - frustado, dividido e vazio de ‘emoções’.

Os Pequenos Prazeres

Fumar um cigarro e tomar um café preto. Esfregar as mãos num dia de frio. Experimentar a vida. São alguns argumentos de sedução utilizados por Peter ‘Colombus’ - o anjo que caiu - para provocar as sensações de desejo em Damiel.

Não se verifica uma banalização dos sentimentos de atração e paixão vivenciados por Damiel e Marion. Devido a inexistência de utilização de clichês romantescos, os personagens conectam-se espiritualmente sem excessos de venturas carnais. Apenas observar Marion é suficientemente prazeroso para o curioso anjo, que encanta-se com a humanidade em geral, pela simples possibilidade de poder ‘sentir’, independentemente de perdas ou ganhos. Não se verifica a presença do antagonista, pelo caráter intimista da obra, onde os conflitos se configuram no plano psicológico, sem cair em estereótipos.

Momentos de Clímax – As Passagens

Duas situações de clímax são identificáveis. No trailler de Marion, quando ela afirma: “Feche os olhos. Depois feche novamente. Aí, até as pedras terão vida”. É o primeiro momento do filme em que se verifica a utilização das cores e o concreto desejo da ‘humanização’. Damiel ergue a pedra e a guarda. O mesmo objeto retorna no segundo momento de clímax - a passagem propriamente dita - Quando Cassiel verifica a existência de pegadas deixadas por Damiel, que psicologicamente já havia “caído” para o mundo mortal. Damiel mostra-lhe a pedra. Após o travelling da câmera, foi realizada a transmutação: Cassiel segurando o anjo convertido.

O Desfecho

Marion foi a autora do ‘empurrão’ para a queda anti-parabólica de Damiel. É percebível o caráter evolutivo da migração do anjo de um plano de passividade para uma realidade de novas atitudes e de livre-arbítrio. Não há a promessa de felicidade ou de sucesso na adequação à vida humana, mas um caráter otimista é verificado na situação ‘labiríntica’ vivenciada pelos personagens, afinal, ambos sofreram metamorfoses – o fim da vida celestial e o fim do circo.

Aspectos Plásticos

Trilhas eficientes para o efeito contemplativo. Um teor clássico, com vozes em coro ilustram a experiência do “ser” anjo. Para Marion, a utilização de ritmos circenses, com toques de realejo – conferindo um estilo ‘ afrancesado’ na musicalidade. O quarteto de jazz da apresentação noturna de Marion no circo utiliza os mesmo elementos repetitivos da sonoridade circense. A banda de rock gótica confirma o padrão contemplativo da trilha sonora, com arranjos entorpecentes que caracterizam as viagens interiores de Marion.