segunda-feira, agosto 02, 2004

Crítica: Underground

"A Sátira de uma Guerra"

Por Carina Rabelo

1941. Os alemães invadem Belgrado, anunciando o início da Segunda Guerra Mundial. Três anos depois, os russos bombardeiam a cidade, dominada por alemães. Assim nos é apresentada a Iugoslávia de Emir Kusturica, premiado com Palma de Ouro no festival de Cannes em 1984 pelo filme “Quando papai saiu em viagem de negócios” e diretor de “Underground”, filme vencedor da Palma de Ouro de Cannes, em 1995. Apesar do estilo caricatural dos personagens, o espectador encontra-se diante de uma obra curiosamente complexa. Natalija, uma mulher frívola e escandalosa, Marko, um facínora manipulador, Crni, um fanático estabanado, Ivan, um simplório gago e Jovan, uma espécie de menino criado em “laboratório” que experimentará o mundo pela primeira vez aos 21 anos, estruturam um elenco que compartilha um único espaço – um porão – um refúgio numa guerra de massacres e destruições. A relação entre os personagens compõem o programa de humor, que predomina durante toda a narrativa, pois a II Guerra Mundial é apresentada como pano de fundo nos conflitos das relações entre estes personagens. Os amigos Crni e Marko dividem a mesma mulher e os anseios de uma guerra... que vai muito além das questões internacionais que envolvem fascistas, nazistas e comunistas. É uma guerra sobre a identidade de um povo, a luta pela sobrevivência daqueles que precisam de uma revolução grandiosa para que possam dividir, não só um porão, mas uma razão para viver.

Há uma guerra lá fora...

Nos primeiros contatos com a obra, o espectador surpreende-se com o descaso dos personagens em relação ao bombardeio. Belgrado está em chamas e um casal permanece inabalável em uma sala de jantar. Numa outra residência, um homem parece estar mais preocupado com seus prazeres sexuais do que com o desabamento da sua casa. As jaulas do zoológico são aniquiladas e os animais estão a solta. Mas ninguém parece se preocupar muito com tigres e elefantes nas praças de Belgrado, afinal, não há nada de mais acontecendo lá fora, apenas o início da II Guerra Mundial. É neste contexto inverossímil e, por vezes hilário, que se estabelece o humor no filme. Através do absurdo, o filme consegue captar as atenções nos diversos padrões de apreciação.

Underground não advoga uma causa política. A postura comunista dos personagens principais remete a um outro questionamento. Não é um sistema de governo que está em discussão. O filme não quer provar ou militar no plano ideológico. Seu posicionamento é verificado através de uma orientação para um argumento psicológico, no qual os personagens estilizados em suas características expressam uma total dependência em relação ao porão em que se refugiam – um mundo subterrâneo, onde existem pessoas que sobrevivem pela crença de que são privilegiados, pois estão vivos, acima de tudo. É na guerra que se constrói a identidade de um povo e este túnel subterrâneo funciona como uma espécie de lar. Os refugiados são como irmãos, integrantes de uma família grande, que perdeu muitos filhos lá fora... na temível guerra que consome toda a Iugoslávia. Não importa quem está atacando, pois russos e alemães deixaram suas marcas em Belgrado, numa tempestade de sangue e de dominação militar. O inimigo é mais complexo – é o vazio e a falta de uma identidade, tanto para quem está no porão quanto para quem está fora dele. O ditador Tito assume como um herói, alguém que, finalmente, representa esta nação desunificada, formada por sérvios, croatas, albaneses – todos unidos geograficamente e tão isolados culturalmente.

O ditador do porão

Se aquele mundo subterrâneo fosse uma nação, certamente, Marko seria seu chefe de estado. Grande articulador do teatro de guerra, Marko catequiza seus súditos e monta um pequeno exército – os próprios habitantes do mundo “Underground” – que produzem armas para fortalecer a máquina bélica da ofensiva comunista. O partido Petar Popara, criado por Marko e seus ‘camaradas’, foi mais um dispositivo que favoreceu a estrutura do domínio ideológico no porão. Marko era um espécie de ‘Tito’, o grande ídolo da massa de refugiados. É um personagem caracterizado pela ambição. Os desenlaces são explorados com graça, devido a textura caricatural do personagem, que demonstra seu comportamento tirânico e obsessivo. Apaixonado por Natalija, Marko utiliza os refugiados do porão como operários na produção de armas, que serão contrabandeadas, proporcionando seu enriquecimento ilícito. Cnir, aparentemente seu melhor amigo, torna-se uma peça fundamental no seu teatro de guerra, uma vez que era um dos maiores articuladores e disseminadores do Petar Popara na comunidade do porão.

Cnir, Natalija e Ivan são outros personagens relevantes para a narrativa. Cnir e Ivan vivem vinte anos escondidos no porão. Cnir anseia pelo dia em que farão os alemães pagarem por tudo o que fizeram. Através do seu discurso político oco, prega o comunismo – um aparelho de contestação deste personagem que, inquieto, está sempre em busca do intangível – como a mulher ‘impossível’ e o filho desaparecido. Ivan, irmão de Marko, prefere perseguir Soni, um chimpanzé – o único sobrevivente do massacre no zoológico – do que atuar entre os ‘camaradas’ do fictício partido comunista. Ivan além de gago, tem problemas de relacionamento com seres da mesma espécie. Seu macaquinho parece mais adaptado à convivência com os humanos e ao raciocínio lógico, ou melhor, instintivo – que culminará com a explosão do porão. Um chimpanzé foi mais hábil do que qualquer humano para colocar um fim naquela farsa.

Jovan, filho de Cnir, nasceu sob os escombros do porão, e lá viveu por todo o tempo. Ao completar 21 anos, sai pela primeira vez do porão sorrateiro, conhecendo a lua, ou o sol, tanto faz. O rio também é uma novidade. Nadar? Nem pensar... os habitantes do porão em muito assemelham-se aos animais apresentados no início da narrativa. Presos e domesticados. Limitados a um universo que necessita de explosivos para abrir suas grades. Portanto, a guerra é um mero pretexto para a verdadeira libertação. Cnir e Jovan parecem desfrutar do prazer da vitória sobre o inimigo invisível, a própria desolação da qual eram vítimas.

Natalija direciona seus afetos para Marko e Cnir alternadamente. Atriz de teatro, inicialmente, cortejava o soldado alemão Franz, foge com Cnir e seduz Marko que, segundo ela, conta ‘mentiras tão lindas’. Alienada e frívola, Natalija representa um ponto de interseção dos interesses de Marko e Cnir. O terceiro vértice para a composição do triângulo amoroso que sustenta o humor na narrativa, através de ações estereotipadas e alegóricas. Gritos, escândalos e acessos de embriaguez são algumas das escolhas para a configuração desta personagem.

Lili Marlene e as cenas documentais

A trilha sonora, com destaque para a repetitiva banda de sopro e seu repertório único, oferece um elo entre a música principal “Lili Marlene”, interpretada por Marlene Dietrich, e as imagens do documentário da guerra, mesclando elementos da história real com personagens da ficção. As imagens de Tito, das marchas iugoslavas e a vitória comunista complementam a ficção, mas, novamente, o caráter documental não remete a uma relevância na narrativa. Os componentes na confecção dos planos cinematográficos são demarcados por cortes secos, imagens tremidas (especialmente nas cenas dos bombardeios), utilização de filtros avermelhados e planos de detalhe. Os planos não são longos, mas as cenas são demasiadamente extensas, acarretando em 195 minutos de exposição num ritmo contínuo e progressivo. A transição dos capítulos da narrativa utilizam um padrão estético semelhante aos filmes mudos do início do século passado: quadros pretos com lettering branco, bordas clássicas e uma trilha suave. Há uma referência à estética de apresentação da comicidade do cinema teatral dos anos 20, como “Tempos Modernos”, de Charles Chaplin.

Uma história que não tem fim

O aspecto cômico do texto cede espaço a uma narrativa surrealista, nas últimos cenas. Isolados em um pedaço de terra que descola do resto do continente, aí esta a ‘sociedade do porão’, novamente à deriva... agora no seu próprio espaço. A guerra étnica entre sérvios e croatas é pontuada, mas, assim como a II Guerra Mundial, não chega a configurar-se como um fato de relevância histórica, mas apenas mais uma ambiência para a composição do argumento fílmico, que se baseia na perspectiva das relações humanas. A necessidade da guerra é eminente, pois até mesmo quando não existe, é inventada. A eterna busca pelo ‘porão’ conota a necessidade do encontro com um referencial maior. E a guerra cumpre este papel: o elemento de compactação por um ideal comum, mesmo que ele se fundamente numa militância política irreal.

CURIOSIDADES!

Emir Kusturica

Nascido em 24 de Novembro de 1954, em Sarajevo, na Bósnia-Herzegovina, desde 1986 tem atuado como músico, tocando baixo na banda iugoslava de tecno-rock “No Smoking”. Um pouco antes da guerra nos Balcãs estourar no início dos anos 90, o líder da banda Nele Karajilic mudou-se para Belgrado em 1994 e formou uma nova banda com músicos mais jovens, incluindo o bateirista Stribor Kusturica, filho de Emir. Em 1998, “No Smoking” compôs a trilha para o filme de Kusturica “Black Cat, White Cat”, vencedor do leão de prata do festival de Veneza do mesmo ano. Em 1999, “No Smoking” gravou um novo álbum “Unza Unza Time”, produzido pela gravadora Universal, assim como um vídeo clipe para a MTV, dirigido pelo prórpio Emir Kusturica.