Crítica: Cidade de Deus
"Na Cidade de Deus, a exceção é a regra"
Por Carina Rabelo
O quase estreante diretor Fernando Meirelles conseguiu realizar uma obra fílmica tão polêmica, que tornou-se impossível alguém permanecer indiferente a Cidade de Deus, filme inspirado no livro homônimo, que estreiou recentemente nas principais salas de cinema de todo o país. A história é relatada pelo personagem Buscapé, um garoto que cresceu no conjunto habitacional Cidade de Deus, um local construído na década de 60 para abrigar aquels que perderam suas casas com as enchentes - um universo de desolados pelas tragédias, reunidos num único espaço. Buscapé nos apresenta a trama numa narrativa documental, relatando os principais fatos que estruturaram a realidade do local. Os efeitos no público são particulamente curiosos. O roteiro provoca reações que transitam da indignação ao riso, através de um programa que oferece amplas possibilidades à apreciação.
A hierarquia no morro
Os personagens são apresentados por Buscapé ao longo da narrativa e a interação entre eles permite ao apreciados orientar a organização dos afetos. A história é dividida em três blocos temporais: as décadas de 1960, 70 e o 'começo do fim'. Digressões e a quebra da linearidade são alguns recursos utilizados que permitem a oferta de um rítmo dinâmico ao roteiro. Na década de 70, surgem Buscapé, Dadinho e Bené (ainda crianças) e o os cabeças da criminalidade na época, o 'Trio Ternura', formado por Alicate, Marreco e Cabeleira, os bandidos mais temidos na época. Na década de 70, alguns personagens ingressam na narrativa: uma menina chamada Angélica (a paixão de Buscapé), Tiago (um burguês viciado em drogas), Cenoura (um traficante respeitado), Mané Galinha e algumas crianças que compõe a nova rede de interrelações do tráfico. Dadinho assume uma nova identidade: 'Zé Pequeno', o maior traficante da CDD (Cidade de Deus), Bené - parceiro de Zé Pequeno - tranforma-se numa espécie de traficante 'ético', que apazigua as práticas de crueldades do seu amigo e comparsa. Buscapé representa 'uma esperança', um dos poucos que não sucumbiu ao universo da marginalidade. Curiosamente, a CDD funciona como um império bipolarizado, onde Zé Pequeno e Cenoura comandam o tráfico de drogas. As leis da Cidade de Deus se baseiam na exceção da regra, onde matar é uma questão de sobrevivência. A coexistência dos traficantes se realiza graças a política diplomática de Bené, parceiro de Zé Pequeno. O monopólio ideológico de Zé Pequeno na Cidade de Deus promovia uma certa ordem ao caos de roubos e assaltos, afinal, a prioridade criminal na Cidade de Deus era o tráfico de drogas. Qualquer outra prática era considerada um desrespeito aos interesses de Zé Pequeno.
Destaque para alguns personagens...
Há um claro tom moralista ao longo da narrativa, afinal, Buscapé preferia a praia, o baseado e sua máquina fotográfica ao mundo do crime. Não que ele seja bonzinho e inocente, só não tinha vocação para a 'bandidagem'. A história de Buscapé prova que o crime não compensa, apesar das constantes dificuldades e injustiças vivenciadas por um negro, pobre e morador da CDD. Numa das subdivisões da narrativa, há um capítulo entitulado 'vida de otário', em que Buscapé tenta trabalhar num supermercado - a demissão injusta e a discriminação levantam o questionamento: o que compensa é a busca pela sobrevivência. Será? Bem, no 'Trio Ternura' só quem saiu com vida foi justamente aquele que saiu do crime - Alicate, que trocou as armas pela bíblia. A oportunidade com o fotojornalismo de desenvolve pela casualidade dele estar no lugar certo na hora certa. Não há grandes questões éticas ou morais defendidas por este personagem. De fato, Buscapé esquiva-se dos tiros e desvia-se do crime, mas, acima de tudo, por uma questão de sobrevivência.
Os afetos são organizados para que se verifique uma certa 'predileção' pelo personagem Buscapé, através da reconhecibilidade do seu despreparo para o crime. Bené, apesar da inserção no crime também é um dos mais 'carismáticos'. Bené atua como o pacificador do morro. O único que é de fato respeitado por Zé Pequeno. Irmão de Cabeleira, o bandido malandro da antiga CDD, onde os crimes eram mais toleráveis e menos hediondos. Bené, assim como seu irmão, troca o crime pelo amor de uma mulher, mas o sonho da mudança de vida com a mulher amada vem acompanhado da inevitabilidade da morte, em ambos os casos. Bené atuava como um catalizador para os anseios de Zé Pequeno e funcionava como o 'relações públicas' do morro, que conseguia reunir num único espaço os funkeiros, os sambistas, os crentes, os amantes da black music, os cocotas (burgueses) e Zé Pequeno.
Zé Pequeno iniciou sua vida de criminalidade muito cedo. Prematuramente cruel, já era capaz de executar a sangue frio uma chacina num motel da região, e por nenhum motivo aparente. Quando pequeno, ainda conhecido como Dadinho, queria ser respeitado e já apresentava um talento assustador para o crime. Cabeleira o considerava, muitas vezes defendendo-o dos ataques dos mais velhos, especialmente de Marreco (irmão de Buscapé), que nunca respeitou Dadinho. Em diversos pontos da narrativa, é notável a preocupação das crianças em serem respeitadas pelos mandante do crime. Os menores, referidos como 'caixa-baixa' são constantemente maltratados e explorados pelos mais velhos. A regra é provar que quanto mais cruel e impiedoso, mais preparado para o crime. As bolas de gude e pipas são substituídas por AR-15 e metralhadoras de grande porte. Dadinho cresce e é batizado como 'Zé Pequeno' por um Pai de Santo, que lhe promete poder e glória na sua trajetória no crime. O seu comportamento deliquente oferece uma base para as estratégias de humor do filme. Sua crueldade e frieza arranca alguns risos da platéia e logo em seguida provoca um silêncio decsoncertante. Os programas de tragédia e humor são apresentados equilibradamente ao longo de toda a narrativa, apesar da história tornar-se cada vez mais impactante, com o cresciemento e aperfeiçoamento do crime. A morte de Zé Pequeno provoca uma das grandes reviravoltas na história, pois Zé Pequeno perde toda e qualquer capacidade de julgamento racional. A questão do tráfico se perde e as questões pessoais de ódio, inveja e vigança assumem o carro-chefe da eclosão da guerra na Cidade de Deus.
Cenoura era o outro vértice do tráfico. Inimigo de Zé Pequeno, mantinha relações cordiais com Bené, mantendo-se intacto na Cidade de Deus. Com a morte de Bené, a guerrilha foi articulada e Cenoura procurou apoio do Mané Galinha, um ex-soldado que ingressou na guerra contra Zé Pequeno por questões puramente pessoais. Defendia a preservação da vida dos inocentes, mas assim como todos na Cidade de Deus, aprendeu que toda regra tem exceção, e logo só viu tão criminoso como qualquer outro sujeito naquela guerra. As crianças perdem a pureza característica da infância e mostram-se tão sedentas pelo crime e pelo poder como qualquer adulto. Não há o mito do bom e do mau. A máxima da recompensa com a bondande cede espaço para a necessidade da lei da sobrevivência.
As estratégias narrativas
Os planos de filmagem são particulamente inovadores. Os personagens aparecem entrecortados e os supercloses nos pés ou na boca são algumas das escolhas de enquadramento que provocam efeitos que vão da graça à repugnância. O sépia utilizado nas cenas da década de 60, os cabelos black power da década de 70, o funk e a black music permitem uma clara associação às referências de tempo/espaço que o filme apresenta. Movimentos de câmera em travelling são alguns dos destaques nos efeitos visuais. As canções acompanham o ritmo da narrativa, com sambas e choros clássicos na década de 60 e 'Metamorfose Ambulante' de Raul Seixas para a década de 70 - que marca a transformação de Bené de um simples traficante num traficante playboy - e algumas canções de Tim Maia servem com eficácia ao contexto e ao tempo da história. A história da boca dos AP´s talvez seja um dos aspectos mais marcantes para que o espectador possa acompanhar o processo de evolução do tráfico. Tudo começa com uma dona de casa que resolve vender drogas depois que fica viúva. A boca é tomada por 'Grande' - o cenário que era uma casa tradicional vai começando a entrar num processo de degradação - as fusões cumprem o papel de marcar a lenta a gradual passagem de tempo. Ao longo da história da boca dos AP´s, os móveis vão desaparecendo e ambiente vai se deteriorando cada vez mais. Quando Zé Pequeno assume a boca, nada mais há, apenas um espaço vazio. A quebra da linearidade da narrativa é executada de forma clara, sem que o roteiro ou a história apresentem-se dispersos. Muitas digressões são utilizadas, quando o narrador anuncia previamente a apresentação de um personagem e deixa para contar sua história depois. A expectativa criada no espectador provoca uma certa familiarização com os integrantes da CDD. É como se todos nós fizessemos parte daquele mundo e acompanhassemos ao vivo o desenvolvimento da trama. As telas divididas conferem ao espectador um conhecimento paralelo dos fatos e a consequente previsão de alguns acontecimentos. O figurino é estremamente fiel ao retrato da época e alguns detalhes foram minusciosamente respeitados, como os carros, o fardamento da polícia (que vai mudando com o passar dos anos) e até o rótulo da lata de leite ninho que aparece no supermercado. Não há qualquer falha nos detalhes que compõem a cena. A estratégia do feio x belo também é colocada de forma clara. Zé Pequeno além de cruel é feio e perverso. Seus traços grosseiros externalizam seu caráter horrendo. O título de 'herói' na guerra do tráfico poderia caber para Mané Galinha (o quase mocinho da história), que entrou no mundo do crime não para roubar ou matar, mas para vingar-se de Zé Pequeno e promover a justiça dos homens. Como o próprio Buscapé refere-se na contextualização do duelo Mané Galinha x Zé Pequeno : "A parada aqui é entre o bonitão do bem e o feioso do mal". Naturalmente, os afetos contemplam Mané Galinha - que além de belo, luta por causas mais nobres.
Os ganchos de atualidade
A guerra do tráfico nunca foi apresentada com tamanho realismo. Para os menos integrados com a realidade das favelas brasileiras, pode parecer uma obra farta de clichês e estilizações. Mas é importante ressaltar que há um mundo, uma Cidade de Deus, que vai muito além dos nossos jardins e quintais, e de um conhecimento raso da questão do narcotráfico. Não há uma muita complexidade nos personagens, mas, nem por isso, são caricaturais. Caracterizados com verossimilhança, Buscapé, Zé Pequeno, Bené e os demais representam aqueles que vivem nos extremos entre a vida e a morte, o crime e a pureza, a exclusão social e as recompensas do tráfico. A procura por poder e respeito é uma condição humana que supera classes sociais, e que compõe a situação da busca da sobrevivência, num local onde a vida é tudo o que se tem. Aqui fora, há um sistema policial e jurídico que funciona para nós. Na Cidade de Deus, a polícia corrupta torna-se conivente com o tráfico, explicitando o tênue limite que separa os parâmetros de justiça e de criminalidade. "A polícia faz a sua parte. Recebe o dela e não perturba". Nos programas narrativos policiais, a abordagem do crime se dá sob duas instâncias: o busca pela riqueza material e a passionalidade. No filme 'Cidade de Deus' percebe-se o crime sob a ótica do tráfico (poder e respeito) e por questõe pessoais, sobretudo com as crianças, que vêem na guerrilha um instrumento de vingança pela morte de um pai ou pelo estupro de uma irmã - uma grande 'escola do crime'. Um mecanismo de justiça que lhes parece mais eficaz do que qualquer sistema jurídico ou policial. A morte é banalizada e já não se sabe como toda a guerra começou. A questão é cíclica: armas que são fornecidas por policiais para os 'intermediários' chegam aos traficantes, que as distribuem para as crianças, perpetuando o fluxo da violência. Não há soluções para lugares como Cidade de Deus - é sempre o começo do fim, onde matar um traficante apenas significa facilitar a vida de algum outro. As escolhas não se fundamentam na perspectiva comum da justiça. Essas pessoas vivem no limite entre agir da forma certa, da forma errada ou da forma do tráfico.
Por Carina Rabelo
O quase estreante diretor Fernando Meirelles conseguiu realizar uma obra fílmica tão polêmica, que tornou-se impossível alguém permanecer indiferente a Cidade de Deus, filme inspirado no livro homônimo, que estreiou recentemente nas principais salas de cinema de todo o país. A história é relatada pelo personagem Buscapé, um garoto que cresceu no conjunto habitacional Cidade de Deus, um local construído na década de 60 para abrigar aquels que perderam suas casas com as enchentes - um universo de desolados pelas tragédias, reunidos num único espaço. Buscapé nos apresenta a trama numa narrativa documental, relatando os principais fatos que estruturaram a realidade do local. Os efeitos no público são particulamente curiosos. O roteiro provoca reações que transitam da indignação ao riso, através de um programa que oferece amplas possibilidades à apreciação.
A hierarquia no morro
Os personagens são apresentados por Buscapé ao longo da narrativa e a interação entre eles permite ao apreciados orientar a organização dos afetos. A história é dividida em três blocos temporais: as décadas de 1960, 70 e o 'começo do fim'. Digressões e a quebra da linearidade são alguns recursos utilizados que permitem a oferta de um rítmo dinâmico ao roteiro. Na década de 70, surgem Buscapé, Dadinho e Bené (ainda crianças) e o os cabeças da criminalidade na época, o 'Trio Ternura', formado por Alicate, Marreco e Cabeleira, os bandidos mais temidos na época. Na década de 70, alguns personagens ingressam na narrativa: uma menina chamada Angélica (a paixão de Buscapé), Tiago (um burguês viciado em drogas), Cenoura (um traficante respeitado), Mané Galinha e algumas crianças que compõe a nova rede de interrelações do tráfico. Dadinho assume uma nova identidade: 'Zé Pequeno', o maior traficante da CDD (Cidade de Deus), Bené - parceiro de Zé Pequeno - tranforma-se numa espécie de traficante 'ético', que apazigua as práticas de crueldades do seu amigo e comparsa. Buscapé representa 'uma esperança', um dos poucos que não sucumbiu ao universo da marginalidade. Curiosamente, a CDD funciona como um império bipolarizado, onde Zé Pequeno e Cenoura comandam o tráfico de drogas. As leis da Cidade de Deus se baseiam na exceção da regra, onde matar é uma questão de sobrevivência. A coexistência dos traficantes se realiza graças a política diplomática de Bené, parceiro de Zé Pequeno. O monopólio ideológico de Zé Pequeno na Cidade de Deus promovia uma certa ordem ao caos de roubos e assaltos, afinal, a prioridade criminal na Cidade de Deus era o tráfico de drogas. Qualquer outra prática era considerada um desrespeito aos interesses de Zé Pequeno.
Destaque para alguns personagens...
Há um claro tom moralista ao longo da narrativa, afinal, Buscapé preferia a praia, o baseado e sua máquina fotográfica ao mundo do crime. Não que ele seja bonzinho e inocente, só não tinha vocação para a 'bandidagem'. A história de Buscapé prova que o crime não compensa, apesar das constantes dificuldades e injustiças vivenciadas por um negro, pobre e morador da CDD. Numa das subdivisões da narrativa, há um capítulo entitulado 'vida de otário', em que Buscapé tenta trabalhar num supermercado - a demissão injusta e a discriminação levantam o questionamento: o que compensa é a busca pela sobrevivência. Será? Bem, no 'Trio Ternura' só quem saiu com vida foi justamente aquele que saiu do crime - Alicate, que trocou as armas pela bíblia. A oportunidade com o fotojornalismo de desenvolve pela casualidade dele estar no lugar certo na hora certa. Não há grandes questões éticas ou morais defendidas por este personagem. De fato, Buscapé esquiva-se dos tiros e desvia-se do crime, mas, acima de tudo, por uma questão de sobrevivência.
Os afetos são organizados para que se verifique uma certa 'predileção' pelo personagem Buscapé, através da reconhecibilidade do seu despreparo para o crime. Bené, apesar da inserção no crime também é um dos mais 'carismáticos'. Bené atua como o pacificador do morro. O único que é de fato respeitado por Zé Pequeno. Irmão de Cabeleira, o bandido malandro da antiga CDD, onde os crimes eram mais toleráveis e menos hediondos. Bené, assim como seu irmão, troca o crime pelo amor de uma mulher, mas o sonho da mudança de vida com a mulher amada vem acompanhado da inevitabilidade da morte, em ambos os casos. Bené atuava como um catalizador para os anseios de Zé Pequeno e funcionava como o 'relações públicas' do morro, que conseguia reunir num único espaço os funkeiros, os sambistas, os crentes, os amantes da black music, os cocotas (burgueses) e Zé Pequeno.
Zé Pequeno iniciou sua vida de criminalidade muito cedo. Prematuramente cruel, já era capaz de executar a sangue frio uma chacina num motel da região, e por nenhum motivo aparente. Quando pequeno, ainda conhecido como Dadinho, queria ser respeitado e já apresentava um talento assustador para o crime. Cabeleira o considerava, muitas vezes defendendo-o dos ataques dos mais velhos, especialmente de Marreco (irmão de Buscapé), que nunca respeitou Dadinho. Em diversos pontos da narrativa, é notável a preocupação das crianças em serem respeitadas pelos mandante do crime. Os menores, referidos como 'caixa-baixa' são constantemente maltratados e explorados pelos mais velhos. A regra é provar que quanto mais cruel e impiedoso, mais preparado para o crime. As bolas de gude e pipas são substituídas por AR-15 e metralhadoras de grande porte. Dadinho cresce e é batizado como 'Zé Pequeno' por um Pai de Santo, que lhe promete poder e glória na sua trajetória no crime. O seu comportamento deliquente oferece uma base para as estratégias de humor do filme. Sua crueldade e frieza arranca alguns risos da platéia e logo em seguida provoca um silêncio decsoncertante. Os programas de tragédia e humor são apresentados equilibradamente ao longo de toda a narrativa, apesar da história tornar-se cada vez mais impactante, com o cresciemento e aperfeiçoamento do crime. A morte de Zé Pequeno provoca uma das grandes reviravoltas na história, pois Zé Pequeno perde toda e qualquer capacidade de julgamento racional. A questão do tráfico se perde e as questões pessoais de ódio, inveja e vigança assumem o carro-chefe da eclosão da guerra na Cidade de Deus.
Cenoura era o outro vértice do tráfico. Inimigo de Zé Pequeno, mantinha relações cordiais com Bené, mantendo-se intacto na Cidade de Deus. Com a morte de Bené, a guerrilha foi articulada e Cenoura procurou apoio do Mané Galinha, um ex-soldado que ingressou na guerra contra Zé Pequeno por questões puramente pessoais. Defendia a preservação da vida dos inocentes, mas assim como todos na Cidade de Deus, aprendeu que toda regra tem exceção, e logo só viu tão criminoso como qualquer outro sujeito naquela guerra. As crianças perdem a pureza característica da infância e mostram-se tão sedentas pelo crime e pelo poder como qualquer adulto. Não há o mito do bom e do mau. A máxima da recompensa com a bondande cede espaço para a necessidade da lei da sobrevivência.
As estratégias narrativas
Os planos de filmagem são particulamente inovadores. Os personagens aparecem entrecortados e os supercloses nos pés ou na boca são algumas das escolhas de enquadramento que provocam efeitos que vão da graça à repugnância. O sépia utilizado nas cenas da década de 60, os cabelos black power da década de 70, o funk e a black music permitem uma clara associação às referências de tempo/espaço que o filme apresenta. Movimentos de câmera em travelling são alguns dos destaques nos efeitos visuais. As canções acompanham o ritmo da narrativa, com sambas e choros clássicos na década de 60 e 'Metamorfose Ambulante' de Raul Seixas para a década de 70 - que marca a transformação de Bené de um simples traficante num traficante playboy - e algumas canções de Tim Maia servem com eficácia ao contexto e ao tempo da história. A história da boca dos AP´s talvez seja um dos aspectos mais marcantes para que o espectador possa acompanhar o processo de evolução do tráfico. Tudo começa com uma dona de casa que resolve vender drogas depois que fica viúva. A boca é tomada por 'Grande' - o cenário que era uma casa tradicional vai começando a entrar num processo de degradação - as fusões cumprem o papel de marcar a lenta a gradual passagem de tempo. Ao longo da história da boca dos AP´s, os móveis vão desaparecendo e ambiente vai se deteriorando cada vez mais. Quando Zé Pequeno assume a boca, nada mais há, apenas um espaço vazio. A quebra da linearidade da narrativa é executada de forma clara, sem que o roteiro ou a história apresentem-se dispersos. Muitas digressões são utilizadas, quando o narrador anuncia previamente a apresentação de um personagem e deixa para contar sua história depois. A expectativa criada no espectador provoca uma certa familiarização com os integrantes da CDD. É como se todos nós fizessemos parte daquele mundo e acompanhassemos ao vivo o desenvolvimento da trama. As telas divididas conferem ao espectador um conhecimento paralelo dos fatos e a consequente previsão de alguns acontecimentos. O figurino é estremamente fiel ao retrato da época e alguns detalhes foram minusciosamente respeitados, como os carros, o fardamento da polícia (que vai mudando com o passar dos anos) e até o rótulo da lata de leite ninho que aparece no supermercado. Não há qualquer falha nos detalhes que compõem a cena. A estratégia do feio x belo também é colocada de forma clara. Zé Pequeno além de cruel é feio e perverso. Seus traços grosseiros externalizam seu caráter horrendo. O título de 'herói' na guerra do tráfico poderia caber para Mané Galinha (o quase mocinho da história), que entrou no mundo do crime não para roubar ou matar, mas para vingar-se de Zé Pequeno e promover a justiça dos homens. Como o próprio Buscapé refere-se na contextualização do duelo Mané Galinha x Zé Pequeno : "A parada aqui é entre o bonitão do bem e o feioso do mal". Naturalmente, os afetos contemplam Mané Galinha - que além de belo, luta por causas mais nobres.
Os ganchos de atualidade
A guerra do tráfico nunca foi apresentada com tamanho realismo. Para os menos integrados com a realidade das favelas brasileiras, pode parecer uma obra farta de clichês e estilizações. Mas é importante ressaltar que há um mundo, uma Cidade de Deus, que vai muito além dos nossos jardins e quintais, e de um conhecimento raso da questão do narcotráfico. Não há uma muita complexidade nos personagens, mas, nem por isso, são caricaturais. Caracterizados com verossimilhança, Buscapé, Zé Pequeno, Bené e os demais representam aqueles que vivem nos extremos entre a vida e a morte, o crime e a pureza, a exclusão social e as recompensas do tráfico. A procura por poder e respeito é uma condição humana que supera classes sociais, e que compõe a situação da busca da sobrevivência, num local onde a vida é tudo o que se tem. Aqui fora, há um sistema policial e jurídico que funciona para nós. Na Cidade de Deus, a polícia corrupta torna-se conivente com o tráfico, explicitando o tênue limite que separa os parâmetros de justiça e de criminalidade. "A polícia faz a sua parte. Recebe o dela e não perturba". Nos programas narrativos policiais, a abordagem do crime se dá sob duas instâncias: o busca pela riqueza material e a passionalidade. No filme 'Cidade de Deus' percebe-se o crime sob a ótica do tráfico (poder e respeito) e por questõe pessoais, sobretudo com as crianças, que vêem na guerrilha um instrumento de vingança pela morte de um pai ou pelo estupro de uma irmã - uma grande 'escola do crime'. Um mecanismo de justiça que lhes parece mais eficaz do que qualquer sistema jurídico ou policial. A morte é banalizada e já não se sabe como toda a guerra começou. A questão é cíclica: armas que são fornecidas por policiais para os 'intermediários' chegam aos traficantes, que as distribuem para as crianças, perpetuando o fluxo da violência. Não há soluções para lugares como Cidade de Deus - é sempre o começo do fim, onde matar um traficante apenas significa facilitar a vida de algum outro. As escolhas não se fundamentam na perspectiva comum da justiça. Essas pessoas vivem no limite entre agir da forma certa, da forma errada ou da forma do tráfico.
2 Comments:
Excelente Filme!
Alguem sabe o nome da musica lenta em que Ze pequeno chama a namorada do Mane galinha pra dançar?
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